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A memória da Destruição na escrita judaico-brasileira depois de 1985

Por uma literatura pós-Holocausto emergente no Brasil

by Joanna M. Moszczyńska (Author)
©2022 Thesis 434 Pages
Open Access

Summary

O livro examina contos e romances judaico-brasileiros publicados entre 1986 e 2016 que, através de uma estética de pós-memória, de realismo traumático e de embaçamento dos géneros literários, tratam da memória e do impacto da Destruição na vida dos judeus e das judias nascidas no Brasil. A análise literária cultural é realizada dentro do quadro de filiações e afiliações dos textos, demostrando que a literatura pós-Holocausto emergente do Brasil oferece espaço para uma perlaboração polimórfica do legado da violência sistémica no Ocidente.

Table Of Contents

  • Cobertura
  • Título
  • Copyright
  • Sobre o autor
  • Sobre o livro
  • Este eBook pode ser citado
  • Prefácio
  • Agradecimentos
  • Índice
  • Introdução
  • PARTE I: Nas margens da tradição literária
  • Conscientização da Catástrofe na literatura judaico-brasileira 1946 – 1985
  • Digressão I: Holocausto na literatura brasileira não-judaica até 1985
  • 1 “Espaços recém-abertos na literatura brasileira judaica”
  • 1.1 As premissas da legitimação I: o entrelugar de uma literatura “étnica”
  • 1.2 As premissas da legitimação II: o paradigma do testemunho
  • 1.2.1 Literatura testemunhal
  • 1.2.2 “Testemunhas pela imaginação”
  • 2 Literatura pós-Holocausto no Brasil: alguns parâmetros
  • 2.1 Pós-memória: memórias polimórficas e multidirecionais
  • 2.2 Realismo traumático: entre a busca pelo real e a patologia do real
  • 2.3 Uma literatura emergente (1986 – 2016)
  • 3 Moacyr Scliar: uma linhagem literária
  • 3.1 Tendências na literatura brasileira na virada das décadas 1970 e 1980
  • 3.2 Literarização e universalização da experiência judaica no Brasil
  • 3.3 As várias facetas do fascismo
  • 3.4 Moacyr Scliar e “Holocausto”
  • 3.5 “Na minha suja cabeça, o Holocausto” (1986)
  • Parte I: Conclusões
  • PARTE II: Literatura pós-Holocausto na virada dos séculos
  • Introdução: Novos debates e novas vozes
  • 4 Novos cenários da memória do Holocausto: uma perspectiva global
  • 4.1 Literatura brasileira na década de noventa: onde estão as vozes judaicas?
  • Digressão II: Holocausto e crítica colonial
  • 4.2 Memória multidirecional no Brasil
  • 4.3 O boom da memória
  • 4.4 Memory boom: América Latina e Brasil
  • 4.5 O ano do Holocausto – tabu e transgressão
  • 5 “Sem compulsão para representar”: Geração 90 e o tabu da Destruição
  • 5.1 Samuel Reibscheid e o riso do Holocausto
  • 5.1.1 Breve Fantasia (1995)
  • 5.2 Roney Cytrynowicz: entre rememoração e transgressão
  • 5.2.1 “Manequins” e “Dormentes” (1994)
  • 5.2.2 “Barracão II” (1994)
  • 5.2.3 “Gás” (1994)
  • 5.3 Cíntia Moscovich e pequenos holocaustos diários
  • 5.3.1 “O homem que voltou ao frio” (2000)
  • Parte II: Conclusões
  • PARTE III: Romance pós-Holocausto no Brasil (2001 – 2016)
  • Introdução: Memória da Destruição no século XXI
  • 6. Memória transnacional emergente
  • 6.1. O novo milênio literário brasileiro: por uma visibilidade no palco internacional
  • 6.2 Brasil - um núcleo local da comunidade transnacional de pós-memória?
  • 7 Romance pós-Holocausto no Brasil: entre fato e ficção
  • 7.1 Blurring genres
  • 7.2 Memória na literatura | memória da literatura
  • 7.2.1 Romance memorialístico: roman mémoriel, Erinnerungsroman e Gedächtnisroman
  • 7.2.2 Ficção documental depois do Holocausto: o novo romance histórico
  • 7.2.3 Bildungsroman/Romance de formação
  • 7.2.4 Autoficção e a Catástrofe
  • 7.2.5 Autobiografia judaica depois da Destruição: autojudéographie
  • 7.3 Cronotopoi do realismo traumático
  • 7.3.1 Idioma
  • 7.3.2 Trauma
  • 7.3.3 CorpoRe(al)idade
  • 7.3.4 Drüben
  • 8 “Novelização” da Destruição: literatura pós-Holocausto de mulheres no Brasil (2001 – 2010)
  • 8.1 Trauma herdado da 2G: Halina Grynberg, Mameloshn: memória em carne viva (2004)
  • 8.1.1 Introdução
  • 8.1.2 Pós-memória - romance psicológico e testemunho do trauma
  • 8.1.3 Memórias em carne viva
  • 8.1.4 Uma família de sobreviventes
  • 8.1.5 Nós e Outros: habitar a diferença
  • 8.1.6 Holocausto e transmissão: cronotopo do trauma, télescopage e dívida
  • 8.1.7 Conclusões: literatura do trauma e realismo traumático
  • 8.2 Filhas órfãs | mães sem filhas: Giselda Leirner, Nas águas do mesmo rio (2005)
  • 8.2.1 Introdução
  • 8.2.2 O cronotopo do trauma
  • 8.2.3 Em busca do sentido
  • 8.2.4 A desconstrução da origem: filhas órfãs e mães sem filhas
  • 8.2.5 O teor testemunhal e o realismo traumático
  • 8.2.6 Conclusões: uma história transatlântica
  • 8.3 Os corpos da Destruição: Cíntia Moscovich, Por que sou gorda, mamãe? (2006)
  • 8.3.1 Introdução
  • 8.3.2 Confissões (auto)ficcionais
  • 8.3.3 Impossibilidade de luto dentro de um conflito transgeracional
  • 8.3.4 Escritas a partir do corpo obeso: a saga de uma gordura ancestral
  • 8.3.5 Lendo alegoricamente o Outro
  • 8.3.6 Alegoria e realismo traumático
  • 8.3.7 Conclusões
  • 9 Panóplia de escrita de pós-memória (2011 – 2016)
  • 9.1 Memórias fora de lugar | lugares fora de memória: Luis S. Krausz, Desterro: memórias em ruínas (2011)
  • 9.1.1 Introdução
  • 9.1.2 Encenação do Drüben
  • 9.1.3 Ostjuden e Westjuden
  • 9.1.4 Memórias em ruínas – desorientação, desastre e desterro
  • 9.1.5 A iminência inefável da Catástrofe: São Paulo, uma cidade sitiada
  • 9.1.6 Pensamento deambulante como a condição de ser sem origem
  • 9.1.7 “Como se” – conclusões
  • 9.2 Narração patrilinear: Michel Laub, Diário da queda (2011)
  • 9.2.1 Introdução
  • 9.2.2 Diário do avô e a falta do testemunho
  • 9.2.3 2G: a busca pelos vestígios e a interpretação da história
  • 9.2.4 Algumas coisas que sei sobre o Holocausto. Autoficção da Terceira Geração
  • 9.2.5 As texturas da transmissão e do luto
  • 9.2.6 Conclusões: memória saturada
  • 9.3 Entre tradição e ruptura: Jacques Fux, Antiterapias (2012)
  • 9.3.1 Introdução
  • 9.3.2 Formação entre ruptura e continuidade
  • 9.3.3 Fiction of memory: uma ficção de metamemória
  • 9.3.4 Memória da ficção: intertextualidade como (anti)terapia entre plágio e cânone
  • 9.3.5 Inscrever-se na judeidade depois do Holocausto: autojudéographie
  • 9.3.6 Conclusões: disparition do Eu
  • 9.4 Formação matrilinear: Paulo Blank, Mentch. A arte de criar um homem (2016)
  • 9.4.1 Introdução
  • 9.4.2 Formação de um Mentch
  • 9.4.3 Cronotopoi da Praça Onze - cronotopoi do Drüben
  • 9.4.4 As ruínas da Welt von Gestern: coisas fora do lugar
  • 9.4.5 Holocausto e a memória comunal dos anos 50
  • 9.4.6 Ano que vem em Birobidjan - entre estepes da Sibéria e Ertsisruel
  • 9.4.7 Passagens e epifanias
  • 9.4.8 Conclusões
  • 9.5 Desfiando a melancólica seda de luto: Rafael Cardoso, O Remanescente: o tempo no exílio (2016)
  • 9.5.1 Introdução
  • 9.5.2 Os bichos-da-seda: de W. G. Sebald a Hugo Simon
  • 9.5.3 Aqueles que restaram
  • 9.5.4 O novo romance histórico entre exaustão e transculturalidade
  • 9.5.5 Habitar a casa na apatridade
  • 9.5.6 Conclusões
  • Parte III: Conclusões
  • “Os livros estão todos inacabados”: conclusões finais
  • Bibliografia

Introdução

Analisando a assimilação judaica no Brasil, Bernardo Sorj (2008: 15) sublinhou a fragilidade cultural, social e política das comunidades judaicas inseridas na sociedade brasileira. O estrato judaico que se tinha cristalizado em resultado das migrações nos séculos XIX e XX caracterizou-se por uma rápida absorção, formando uma classe média relativamente invisível e inativa politicamente; um padrão que, segundo Sorj, se preservou até hoje em dia. A identidade judaica moderna2 foi ademais sujeita às especificidades da construção social brasileira, que fizeram com que sua manutenção se tornasse uma tarefa difícil. Por um lado, o judaísmo3 tradicional seguiu diluindo-se e, por outro lado, a síntese entre as duas culturas, a brasileira e a judaica, provou ser quase impossível (Sorj 2008: 13-14).

Falando desta curiosa falta de particularidades do judaísmo brasileiro, Sorj (2008: 15) apontou para a “pobreza atroz” da expressão judaica intelectual coletiva propriamente brasileira ou judaico-brasileira4, sendo isso resultado da influência dos países com uma tradição judaica muito mais forte e persistente:

←17 | 18→A frágil comunidade judaica brasileira ficou totalmente exposta à colonização pelas tendências ideológicas e institucionais provenientes de Israel e dos Estados Unidos. Finalmente, a tendência de globalização cultural das classes médias – na qual os judeus estão majoritariamente inseridos –, dilui ainda mais as chances do desenvolvimento de uma tradição cultural judaica brasileira. Assim, embora claramente exista uma identidade nacional judaico-brasileira, isto é, judeus que se identificam com a cultura nacional e possuem uma forma judia de serem brasileiros e uma forma brasileira de serem judeus, ela não consegue cristalizar maiores expressões culturais ou institucionais de sentido coletivo. (Sorj 2008: 15)

A formulação de Sorj requere uma revisão. Primeiro, devido ao fato de que já a partir dos anos 80 várias pesquisas evidenciaram de que se trata de um grupo com uma das mais prolíferas e versáteis produções criativas feitas por minorias étnicas e grupos migratórios no país.5 Segundo, uma das características da literatura judaica no Brasil que faz com que ela mantenha o vínculo com a coletividade judaica é a tematização dos aspectos da vida em diáspora e dos eventos trágicos na história milenar do povo judeu, o mais marcante deles sendo o Holocausto.6 Daí, é preciso considerar as influências vindas de outros países, não as ←18 | 19→tratando como manifestações de “colonização” – que parece neste contexto uma noção redutora – mas como translações e diálogos, que apontam para a presença de uma cultura literária de caráter excepcionalmente transcultural, transnacional e polifônico.7 Não obstante, quanto à proliferação do tema do Holocausto, Seligmann-Silva deixou claro, tal como Sorj, que a situação tem se demonstrado precária:

A presença da Shoah na Literatura brasileira é, devemos deixar claro logo de saída, extremamente marginal. Apesar da participação brasileira nas frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial contra as forças nazistas, não se pode perceber na cultura deste país a presença forte deste fato. Mesmo hoje em dia, no início do século 21, com a importância atribuída pelos estudos culturais ao estudo dos relatos de sobreviventes e de minorias perseguidas, este panorama não mudou, ao menos com relação à Shoah. Os sobreviventes que por uma série de motivos variados acabaram aportando no Brasil, não encontraram aí um público acolhedor aos seus testemunhos. E, da mesma forma, o escritor brasileiro que eventualmente se voltou para este tema, tampouco respondeu a uma questão cultural vista como importante. (Seligmann-Silva 2007: 137)

Confrontando a aparente precariedade da produção cultural judaica no Brasil com a ausência da Catástrofe na literatura brasileira e da recepção desse, é possível tirar uma conclusão de que a produção literária local do Holocausto seja um fenômeno marginalizado. No que se refere à recepção do tema no Brasil, não há como não concordar com Seligmann-Silva; no entanto, parece que particularmente nos últimos vinte anos o panorama da produção literária mudou bastante. Surge, portanto, a necessidade de revisar os resultados da pesquisa realizada até agora a respeito da Catástrofe na literatura e na cultura da sociedade multiétnica brasileira, com o objetivo de entender os complexos e multifacetados contextos que condicionam a cristalização do objeto de estudo: a literatura judaico-brasileira pós-Holocausto dos anos 1986 – 2016.←19 | 20→

O tema do seguinte livro constitui a literatura ficcional (contos e romances) criada entre 1986 e 2016, pelos autores e autoras judias brasileiras que lidam com a memória traumática do Holocausto entrelaçando-a com a história e a memória brasileira, numa estética de pós-memória e de realismo traumático, por meio de uma mistura entre gêneros de escrita ficcional e autobiográfica, ou seja, de blurred genres (Lang 2003: 10). Na maioria dos casos, trata-se das narrativas autodiegéticas em primeira pessoa (salvo alguns casos dos contos), de alto grau de autorreflexividade e autoconsciência, que sublinham a perspectiva de identificação e da memória em gerações nascidas posteriormente. A relação entre a instância autoral e a instância narrativa, e a resultante dela narração de confiabilidade comprometida, demonstra-se altamente problemática e possui uma importância ética particular em relação com o direito de falar e de escrever depois da Destruição.8

O objeto de pesquisa é chamado de literatura judaico-brasileira pós-Holocausto. A escolha consciente do hífen expressa a integração literária que Saúl Sosnowski defendeu já em 1987. Já o complemento “pós-Holocausto” descreve a literatura que evidencia o pensamento pós-moderno que nasce como uma resposta à Catástrofe formulada com os instrumentos “nascidos do trauma” (Hartman 2002: 1), embora num contexto específico do campo cultural do Brasil e em língua portuguesa9.

Para o início do marco temporal deste estudo escolhi a virada dos anos 1985/6, que se refere a uma série de fatores-eventos nacionais e transnacionais de valor de “simultaneidade histórica” (Gumbrecht 1997: xiv). O ano 1985 marca o fim da ditadura militar no Brasil (1964 – 1985) e, portanto, o momento simbólico para a redemocratização do país. Simbólico, pois, como se sublinha, o processo do declínio do regime já se configurava nos finais dos anos 70 com a abertura política e um afastamento de uma política da “linha dura”.10 É simbólico também porque não trouxe uma mudança efetiva e instantânea na vida das pessoas, visto que os anos 80 passam a ser conhecidos no Brasil sob o nome de “década perdida” devido à profunda crise econômica. Os estudos literários possivelmente ←20 | 21→não podem ignorar esse contexto. Logo, voltando-se para o contexto cultural e literário, ele coincide com o início (1985) do período da literatura pós-Holocausto, chamado por Roskies e Diamant de “memória autorizada” no Ocidente, que diz respeito às circunstâncias particulares da implementação e da consolidação da memória pública do Holocausto a partir de 1985 através da literatura (Roskies e Diamant 2012: 157-188). No mesmo ano, estreia o filme de Claude Lanzmann (1925 – 2018) Shoah; em 1986 publica-se Ver: Amor de David Grossman e a primeira parte da novela gráfica Maus de Art Spiegelman, Maus: a Survivor’s Tale. I: My Father Bleeds History, assim como Die schöne Frau Seidenman do autor polonês, Andrzej Szczypiorski11, todos, por assim dizer, clássicos da literatura do Holocausto. No Brasil, em 1986 publica-se a coletânea de narrativas breves de Moacyr Scliar, O olho enigmático, com uma contribuição vital para se considerar o corpus de literatura pós-Holocausto, nomeadamente o conto “Na minha suja cabeça, o Holocausto”. Como argumento, o conto marca a cesura da representação da Catástrofe no Brasil, abrindo o porvir (dos anos 90 e 2000) de transformações temáticas, estéticas e formais da produção literária a seguir no âmbito da literatura ficcional. Além disso, vale a pena lembrar que naquela altura, por volta de 1986, surgem os primeiros estudos, de Nelson H. Vieira e Robert DiAntonio, acerca da literatura judaica no Brasil e do Holocausto.

Logo, proponho três hipóteses a respeito do objeto de estudo. A primeira hipótese parte da ideia de uma marginalidade não contestada. Embora a pesquisa teórico-crítica dos últimos 35 anos tenha feito um esforço para trilhar o caminho da legitimação do tema do Holocausto nas letras nacionais, a dita temática não resistiu de ser concebida como um campo de saber periférico e alheio às realidades e tendências artísticas consideradas como tipicamente brasileiras. A condição central da marginalidade tem sido identificada com a linhagem étnica. O tema do Holocausto foi, nomeadamente, confinado à literatura judaica, ou seja, uma literatura de traços aparentemente reconhecíveis como judaicos e com a ênfase no contexto local ditado pela necessidade de integração do judaico ao brasileiro e pela preocupação com o reconhecimento do que é judaico na sociedade e na história brasileiras. Em efeito, trata-se de uma tripla marginalização do Holocausto como tema literário: dentro da produção literária reconhecida como brasileira, dentro da produção literária reconhecida no Brasil como judaica (uma que trate dos temas de imigração, exílio, assimilação, ←21 | 22→sobrevivência, etc.) e, finalmente, dentro daquela que se costuma chamar de literatura do Holocausto. Esta marginalização pode ser contestada através de uma conceitualização da literatura brasileira pós-Holocausto como um conjunto literário que emerge na intersecção entre os campos literários12 – nacional brasileiro, transnacional da literatura do Holocausto e igualmente transnacional das literaturas judaicas –, e que autoafirma sua existência, sendo um campo poroso, heterogêneo e autônomo. Com isso sinaliza-se já a segunda hipótese a respeito da emergência.

A emergência dentro de um campo literário, analogicamente à emergência cultural definida por Raymond Williams (1977: 123), refere-se aos significados, valores, práticas e relações que são continuamente criados e recebidos em relação ao que é predominante e geralmente estabelecido. Além de estar sujeita às relações de poder que têm lugar no respectivo campo literário, a emergência deve ser vista como uma caracterização de uma totalidade literária de substância particular e de características reconhecíveis. Um conjunto literário é definido como emergente porque é criado depois de outros conjuntos literários cujas condições – culturais, históricas, ideológicas, sociais, etc. – ele irrevogavelmente compartilha, mesmo quando os aborda de maneira distinta, por exemplo, através dos processos de seleção e reorganização que favorecem a mudança ou a ruptura.

No entanto, como Godzich (1988: 35) enfatiza, não se trata de uma emergência no sentido económico de uma literatura que está em processo de desenvolvimento e inferior ao que se entende como uma literatura que já “emergiu”. A literatura emergente que não cabe facilmente dentro das visões hegemónicas da literatura, dentro de diretrizes metodológicas e teóricas, dentro de padrões de compreensão, com os quais estabelecem-se os cânones e os conjuntos literários nacionais. Neste sentido, pode-se constatar que a partir de 1986 emerge uma literatura pós-Holocausto no Brasil que ultrapassa as fronteiras do conhecimento e das práticas mnemônicas estabelecidas e que possui um potencial para participar da memória transcultural da Catástrofe, inclusive da cultura contemporânea pós-traumática. Tal emergência, como se argumenta aqui, não surge num vácuo, mas num pleno contexto da história de imigração judaica no Brasil, da história ←22 | 23→do Holocausto, das tendências literárias e culturais contemporâneas ligadas à memória, assim como à reflexão sobre a ética e a estética da representação.

Assim concebida literatura emergente encontra seus fundamentos epistemológicos em três tradições literárias, a brasileira (particularmente de gênero de escrita conhecido como autoficção, mas também sendo súdita da estética do terceiro modernismo), a judaica (transnacional) e a judaico-brasileira, que revelam uma ligação com os núcleos culturais europeus do judaísmo, com a cultura ídiche, a tradição bíblica e cabalística, bem como com a problemática de diáspora e de exílio. Além disso, ela também pertence à literatura do Holocausto, um amplo campo literário de parâmetros estáveis e móveis. Em suma, constata-se que o objeto de estudo – a literatura pós-Holocausto do Brasil – é um (sub)campo literário permeável e transcultural, possuindo o potencial de se colocar em relação à sua própria memória cultural e historiografia, “allowing connections between divergent histories and the structures of transmission they engender to emerge” e “avoid[ing] obscuring important historical specificities and particularities” (Hirsch 2019: 175).

A última hipótese surge em resposta à centralidade do testemunho que carateriza as primeiras pesquisas da literatura sobre o Holocausto no Brasil. Para decentralizar a dimensão testemunhal na teorização da ficção pós-Holocausto, sugere-se, através de conceitos de pós-memória (Hirsch 1992, 2001, 2008, 2012, 2019) e realismo traumático (Foster 1996; Rothberg 2000), que funcionam como matrizes estéticas, que o objeto do estudo apropria-se dos discursos de memória vigentes, em seu amplo sentido, construindo narrativas ficcionais autorizadas e com isso, fornece respostas às demandas da representação e da leitura do passado traumático coletivo na pós-modernidade.

Sendo uma abordagem hermenêutica-filológica e histórica centrada em conceitos de memória e sua relação com a escrita ficcional, este livro resgata a noção da literatura (ficcional) pós-Holocausto para a produção judaico-brasileira e insere-a dentro dos discursos literários globais e transculturais de memória do Holocausto.13 Ademais, o livro fornece novos resultados a respeito da literatura em questão, investigando suas filiações e afiliações, que incluem características estéticas e genéricas, bem como o contexto do campo literário no Brasil perante ←23 | 24→e dentro do qual tal literatura, entendida como uma produção cultural material sobre a experiência traumática coletiva, revela-se como uma literatura emergente. O que se propõe aqui é “no prescriptive rules, but the description of […] fictive practice.” (Vice 2000: 8).

A presença do fenômeno descreve-se em dois modos: diacrônico e sincrônico, que podem ser capturados também em termos de interações entre filiações e afiliações.14 Eaglestone explica a possível aplicação dos termos:

For Holocaust fiction, the filiations are more complex than a tradition of great writing: they include personal recollection, the memories of parents and survivors, testimonies, museums, sites, religious traditions, works of history, as well as previous works of art, and part of ‘Holocaust criticism’ should be to trace and reveal these […]. The affiliations, on the other hand, reflect the present and future understandings of the world ‘Over There’, as the parents of David Grossman’s character Momik call the Holocaust. These understandings and their changes over time–ideas about Nazi guilt, for example, or simply an awareness of the enormity of what happened–alter the possibilities of what sort of novel can be written. (2009: 109)

Details

Pages
434
Year
2022
ISBN (PDF)
9783631870211
ISBN (ePUB)
9783631870228
ISBN (Hardcover)
9783631862315
DOI
10.3726/b19247
Open Access
CC-BY
Language
Portuguese
Publication date
2022 (April)
Published
Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Warszawa, Wien, 2022. 434 pp.

Biographical notes

Joanna M. Moszczyńska (Author)

Joanna M. Moszczyńska é pesquisadora associada no Center for International and Transnational Area Studies (CITAS) na Universidade de Ratisbona na Alemanha. Entre janeiro de 2016 e dezembro de 2018 era doutoranda no Colégio Internacional de Graduados "Entre Espaços" no Instituto de Estudos Latino-Americanos na Universidade Livre de Berlim.

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